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É a mineração uma atividade essencial?

Gabriela Blanco

No dia 28 de abril, quando o Brasil ultrapassou a China em número de mortos pela COVID-19, o presidente Jair Bolsonaro incluiu, via decreto, as atividades de lavra, beneficiamento, produção, comercialização, escoamento e suprimento de bens minerais como atividades essenciais. Desde então, assiste-se a uma crescente propagação do vírus pelas cidades do interior do país, sendo as mineradoras importantes focos. Como diversos movimentos e organizações sociais vêm apontando, a exemplo do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), os trabalhadores da mineração já são mais propensos a desenvolverem problemas respiratórios, uma vez que estão submetidos, cotidianamente, à poluição e a ambientes insalubres de trabalho. Forçá-los a seguir trabalhando indiscriminadamente durante a pandemia é reforçar, portanto, ainda mais os riscos que já os acometem.

O Eixo Carajás, no sudeste do Pará, é um triste exemplo dos efeitos de se considerar a mineração uma atividade essencial. O município de Parauapebas, que concentra cinco minas a céu aberto da Vale S.A, é atualmente o segundo município com maior número de casos do estado do Pará – perdendo apenas para Belém. Marabá, outro município partícipe do complexo de ferro de Carajás, encontra-se em quarto lugar no número de casos e, Canaã dos Carajás, aparece em nono lugar. Em Minas Gerais, a situação não é diferente. Só o município de Itabira, lugar de nascimento da Vale, já contabiliza mais de 1.100 casos (dados referentes à última semana de julho). Desde o início da pandemia, o Ministério Público do Trabalho (MPT) chegou a interditar três minas da cidade, em razão de irregularidades na prevenção da COVID-19 entre os seus trabalhadores e, recentemente, assinou um acordo com a Vale S.A para o cumprimento das recomendações de segurança.

Por trás da defesa da mineração como atividade essencial, há a construção política de que ela é uma atividade central para a economia brasileira. Interrompê-la seria, assim, acirrar ainda mais a crise econômica que vivemos. Contudo, é necessário nos questionarmos: a mineração é central em quais termos? Essencial para qual projeto político? Segundo dados do Ministério de Minas e Energia (MME), a participação da indústria extrativa no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro é de 4,06% (2018). Normalmente, representantes do setor da mineração utilizam esse dado para reforçar sua importância na economia. Porém, o dado é impreciso. Na categoria “indústria extrativa”, incluem-se também petróleo e gás. Quando estes são retirados, têm-se a constatação de que o setor mineral contribui, efetivamente, com apenas 0,64% do PIB nacional. Mesmo quando olhamos para o estado de Minas Gerais, que possui uma longa história de exploração mineral em seu território, a importância do setor no PIB ainda assim é relativa (4,3%, conforme os últimos dados divulgados pela Fundação João Pinheiro).

Outro argumento bastante acionado em defesa da mineração é o de que “tudo o que temos vem da mineração”. De fato, bens minerais representam elementos importantes de nossa vida cotidiana. Aparelhos eletrônicos, estradas, materiais de construção, medicamentos, entre tantos outros, utilizam minérios na sua fabricação. Ainda assim, o argumento por si só diz pouco sobre a dinâmica de exploração mineral vigente. É necessário qualificá-lo. Afinal, a extração de ouro direcionada majoritariamente à produção de joias é essencial? E para onde vai o minério de ferro que extraímos de nosso ambiente com tanta ânsia? Para o desenvolvimento de produtos aqui ou fora do país? A partir da compilação de dados do Sumário Mineral Brasileiro, divulgado pela Agência Nacional de Mineração (2017), têm-se que, no período de 2014-2016, o Brasil exportou em média 76% de toda a sua produção de ferro (na forma de minério e pelotas). Para outros minérios, a tendência é semelhante: em média, foram exportados, no mesmo período, 78% da produção de cobre (concentrado e metal), 50% da produção de manganês (concentrado e semimanufaturado) e 89% da produção de nióbio (na forma de liga ferro-nióbio). Dessa forma, não basta afirmarmos que a mineração é importante, é preciso refletir sobre onde, como e para quem ela é empregada. Quem lucra com a destruição de nossos solos e paisagens, contaminação e esgotamento de fontes hídricas, poluição do ar e adoecimento de milhares de trabalhadores?

Falar de uma mineração sustentável é uma contradição de termos, uma impossibilidade prática. Não há sustentabilidade numa atividade que, inexoravelmente, destrói ambientes – sempre haverá uma cava, um morro que deixou de existir, uma vegetação que não nascerá mais, uma fonte hídrica diminuída ou esgotada. Não há sustentabilidade com o adoecimento de trabalhadores, nem com o sempre iminente risco de rompimentos de barragens (não importa o quão avançada seja a tecnologia, o risco sempre existirá). Contudo, cabe sim refletirmos sobre uma mineração que seja praticada a partir de novas responsabilidades, de acordos pautados na melhoria da vida das comunidades locais e com a construção de objetivos transparentes e coletivos.

Para isso, alguns pontos precisam ser destacados. O primeiro é a necessidade de se reconsiderar a pertinência dos projetos de mineração vigentes – e pretendidos – em nosso país. Visto que extraímos majoritariamente para exportar – e ficamos com o ônus da exploração em nossos territórios – cabe revermos os valores desta troca. Inúmeros são os conflitos em torno das mineradoras; centenas são as comunidades que denunciam e lutam contra a destruição de seus modos de existência. Se, ter trabalho é uma urgência e necessidade para essas comunidades, a mineração não é a única fonte possível e existente. Trabalhar economicamente com a manutenção de uma floresta em pé, com o turismo, com a educação ambiental, com a preservação de saberes tradicionais, com o envolvimento efetivo das comunidades com as suas riquezas são caminhos possíveis e concretos. Chega a ser anacrônico, por exemplo, um projeto como o Mina Guaíba, que, em pleno 2020, pretende instaurar – sob o pretexto de “criação de empregos” – uma enorme mina de carvão a céu aberto e um Complexo Carboquímico às margens do Delta do Jacuí, na Região Metropolitana de Porto Alegre/RS. Enquanto outros países fecham suas minas de carvão – considerado o combustível fóssil mais poluente – a população da região metropolitana de Porto Alegre precisa se organizar para combater um projeto que ameaça, em inúmeros aspectos, a sua qualidade de vida.

O segundo ponto é que, se é necessário reavaliar a pertinência dos projetos de mineração em nosso país, isto só será possível a partir de uma ampla articulação popular contra o lobby das mineradoras. O setor da mineração é dominado por multinacionais que sabem bem que, no Brasil, independente dos desastres causados por suas atividades, seus lucros não são tocados. Há, no Legislativo e Executivo, um amplo grupo de políticos que, financiados em suas campanhas e apoiados em suas carreiras políticas, não hesitam em defender os interesses do setor. Um exemplo é o atual ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Em reunião recente de ministros do governo Bolsonaro, o atual ministro afirmou que a pandemia era um momento oportuno para “passar a boiada”. A afirmação, como bem definiu o professor e pesquisador Tádzio Coelho, não se referiu apenas aos interesses do agronegócio, mas também ao “trem do minério”. Salles é mais um representante dos interesses das mineradoras. Em 2018 – pouco antes de assumir a pasta no atual governo – ele foi condenado por improbidade administrativa pela Justiça de São Paulo, por adulterar, quando secretário do Meio Ambiente daquele Estado, mapas de áreas de proteção ambiental em favor de mineradoras.

Por fim, cabe lembrar que, no último 25 de janeiro, o rompimento da barragem do Córrego do Feijão, da mineradora Vale S.A em Brumadinho/MG, completou um ano. Considerado o maior desastre ambiental do Brasil, o rompimento matou 270 pessoas – e algumas vítimas seguem desaparecidas. Já no próximo 5 de novembro, serão completados cinco anos do rompimento da barragem do Fundão, da mineradora Samarco – uma joint venture formada pela Vale S.A e a BHP Billiton – em Mariana/MG. A lama tóxica que se deslocou de Minas Gerais até a Bahia provocou, naquele ano, a morte de 19 pessoas (e um aborto provocado), a destruição de centenas de casas, a contaminação do Rio Doce e a morte de toneladas de peixes. No caso de Mariana, não havia sistema de sirenes instalado para avisar as vítimas do rompimento; no caso de Brumadinho, o sistema instalado não foi acionado. As investigações realizadas já comprovaram que, em ambos os casos, houve negligência, omissões e um claro descaso às vidas.

Além das condenações irrisórias e a dor incomensurável dos atingidos e das atingidas que seguem lutando pelo pagamento de indenizações, o(a)s moradore(a)s dos lugares devastados pelas lamas tóxicas convivem com a presença de suntuosos projetos de “reparação ambiental”, que prometem a eles e elas um “retorno à normalidade”. Hoje, em meio a uma pandemia que já ceifou a vida de quase 100.000 pessoas em todo o país, a “normalidade” prometida pelas mineradoras não deixa de soar semelhante àquela que vemos ser, sistematicamente, defendida pelos discursos de que “a economia não pode parar”. Para muitas e muitos, no entanto, essa “normalidade” já não é mais possível, nem desejada. Se há algo de potente em nossos dias é constatar que, em meio ao desastre e à pandemia, uma profusão de iniciativas coletivas aponta para a construção de novos modos de nos relacionarmos, de promovermos justiça e acordarmos o que é, afinal, essencial às nossas existências.


Sobre a autora: Gabriela Blanco é bacharela em Ciências Sociais (2010) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), licenciada em Ciências Sociais (2017) pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) e mestra em Sociologia (2013) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia também pela UFRGS. Atuou por dois anos como professora substituta no Instituto Federal Catarinense (2015-2016). Leciona no curso de especialização em Ciências Sociais da Universidade de Passo Fundo e, como tutora EAD, no curso de licenciatura em Ciências Sociais da UFRGS.


* Fio da Meada é um espaço de publicação de artigos de autores convidados. As opiniões emitidas nesse artigo são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem necessariamente a posição editorial do portal Fio Vermelho.